Seriado narrativo clássico
Encharcado de clichês,
Desperate Housewives mostra donas de casa desesperadas em uma emissora desesperada
Bruno Boghossian
Uma das apostas mais interessantes entre as séries que estrearam na temporada 2004-05 na televisão aberta americana era um drama cômico sobre um grupo de donas de casa comuns morando em uma cidade comum no subúrbio e vivendo vidas comuns. À primeira vista parece difícil que alguém fosse apostar, de fato, que algo assim poderia ser bom, mas a premissa de Desperate Housewives tende para uma crítica ácida em relação às famílias perfeitas, ao tradicionalismo das donas de casa e à calmaria dos subúrbios. E, novamente, à primeira vista nada que atrai o público americano parece estar presente.
Antes de ser comprada pela rede ABC, a série foi recusada por outras grandes emissoras, como NBC, CBS e HBO, que mal sabia estar cometendo um grande erro. Em setembro e outubro de 2004, a ABC começava mais uma temporada tentando recuperar sua audiência, depois de ter caído do primeiro para o terceiro lugar em audiência, e correndo o risco de perder mais uma posição para a FOX. No dia 3 de outubro, Desperate Housewives estreou sem nenhuma grande expectativa, não figurando nem entre os 40 maiores preços da temporada para propaganda em intervalo comercial. Por isso a surpresa quando saíram as notícias que que o primeiro episódio foi assistido por mais de 21 milhões de telespectadores, sendo a nova série mais assistida da temporada, batendo favoritas como CSI: New York e Joey. E nas semanas seguintes, a audiência cresceu.
Mas o programa trazia com esses números algumas justificativas para seu sucesso imediato. Ao transcorrer da trama, toda a promessa de humor negro e sátira às famílias perfeitas pareceu ser só uma camuflagem. A série mostrou que era só mais um produto de massa, como são tantos - literalmente - CSI's e Lei e Ordem's.
O humor negro, na verdade, eram só cenas que mostravam que as famílias suburbanas na verdade não eram tao perfeitas assim. Os casais se divorciam, os maridos ficam infelizes, as mães se descabelam para cuidar dos filhos, os filhos ficam deprimidos e, bem, algumas mulheres se suicidam. Enfim, nada que todos não soubessem - não que os jornais noticiem todos os dias donas de casa que se suicidaram.
Aparentemente, as personagens principais são estereótipos de mulheres de família do subúrbio. Literalmente generalizante e universal: uma loira, uma morena, uma ruiva e uma latina; uma mãe de três filhos endiabrados, uma divorciada com uma filha, uma obsessiva-compulsiva e uma que tem um marido rico; uma cansada de correr atrás dos filhos, uma que não consegue arrumar um namorada, uma cujo marido não agüenta sua perfeição e uma que tem um caso com o jardineiro.
Talvez a grande genialidade de Desperate Housewives pudesse ser evidentemente essa. O problema está na superficialidade desse aspecto. Quando explora as adversidades das personagens, desses estereótipos generalizantes, com um humor inteligente e não destrutivo, a série é brilhante. Mas como a maioria do público da televisão americana não é grande fã de auto-crítica e a ABC é a emissora das empresas Disney, com programação "para a família", incluindo donas de casa, talvez apelar para a sátira não fosse uma boa idéia.
Então, a grande questão é: o que atraiu 21 milhões de pessoas em um único episódio? A resposta é simples, está no final de cada episódio e se chama gancho ou, como os americanos conhecem, cliffhanger. Os roteiritas arrastam pelos episódios um mistério que, provavelmente, só terá algum desfecho quando a série terminar de vez ou pelo menos quando a temporada terminar. E como a última cena de todos os episódios envolve uma peça microscópica do quebra-cabeça, o espectador comum acha que agora está mais perto de resolver o enigma. Mas cada revelação traz mais um mistério e assim sucessivamente, prendendo a atenção da audiência para os episódios seguintes.
Teoricamente, é um CSI em doses homeopáticas. Na série policial, a cada cena o espectador acompanha os investigadores descobrindo as pistas que levarão à solução do caso. No final, quando o culpado é revelado, a audiência sente que ela resolveu o mistério a partir das evidências que o programa mostrou, mesmo quando os roteiristas brincam e inserem uma reviravolta mirabolante. E é exatamente o motivo do outro único grande sucesso da ABC na temporada, Lost, que apesar de usar uma premissa desinteressante e entediante (sobreviventes de um acidente de avião ficam isolados em uma ilha deserta), o que sustenta os milhões de espectadores são os mistérios e as reviravoltas.
Em Desperate Housewives, com um mistério é bem menor, as coisas acontecem de um modo diferente. Brincam mais com a curiosidade de quem assiste ao programa. Mas o princípio é o mesmo: convidar o telespectador a participar da história e se envolver com os personagens.
Em CSI, é possível perceber que a trama se desenvolve didaticamente, com a exata finalidade de envolver o espectador, mas o público em geral, que não é perito forense, não pode ter certeza disso. Mas uma série sobre o cotidiano de pessoas comuns revela mais facilmente suas fraquezas e suas estratégias. Além do clichê do próprio cliffhanger, estratégia um tanto barata para prender a atenção do espectador, as personagens estereotipadas funcionam para facilitar a trama e reduzir sua dinamicidade. A narração em off, contribui para direcionar o espectador pelas histórias e pelos mistérios escondidos pelas personagens.
Como a indústria televisiva americana trabalha diretamente com números de audiência, que se traduzem em dinheiro dos anunciantes, é provável que a carreira de Desperate Housewives dure um longo tempo. E enquanto a ABC e as outras emissoras souberem o segredo do sucesso, a qualidade dos programas da TV aberta americana pode não cair, mas terá sempre a voz de mulher morta narrando os episódios.
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Ok, eu escrevi e assinei o texto, mas é preciso fazer algumas observações quando o programa que você aparentemente esculhamba recebe cinco indicações para o Globo de Ouro. Mas não esperam uma
mea culpa, porque eu não vou voltar atrás.
Em primeiro lugar, em momento nenhum eu falei sobre o elenco da série e tenho que dizer que as atrizes são fantásticas. Torço pra elas no Globo de Ouro, sinceramente. Felicity Huffman era brilhante em
Sports Night, continuou assim em
Out of Order e está melhor ainda em
Desperate Housewives. Ela tem a atuação mais sóbria e experiente do grupo, sem dúvida.
Teri Hatcher também não fica pra trás, assim como Marcia Cross, mas eu tenho que admitir que, no caso dessas duas, a criação das personagens contribuiu muito para o sucesso das atrizes. Estereótipos exagerados numa comédia funcionam muito bem, principalmente se os roteiros são bons. E, como eu disse,
Desperate Housewives funciona muito bem quando o roteiro funciona.
Dá pra perceber, como diz o título da série, que é uma comédia de
ensemble, que dá certo especialmente por causa das atrizes e das personagens. A única coisa estranha foi Nicollette Sheridan - a clone da Daryl Hannah - ser indicada na categoria de atriz coadjuvante. em a personagem nem a atriz tinham projeção na série para isso.
Enfim, só pra deixar claro: nesse
artigo, minha crítica foi à manipulação do espectador e nada mais. Foi o uso de artifício de folhetim pra prender a atenção do espectador. E todo mundo sabe que quando o lucro vem em primeiro lugar, a qualidade só pode vir em segundo.